Tuesday, December 13, 2005




O momento

Falta no máximo meia hora para que a noite acabe; ainda tenho algum tempo. O Sol não deve tardar aí. Começa-se agora a notar aquela estranha claridade que anuncia o nascer do dia. Olho á volta. Ali o mar e as dunas. Do outro lado a ria. Tudo é belo nesta estranha claridade. Suspiro e fecho levemente os olhos, tento rever aquela imagem no meu cérebro. Tão belo! Volto-me para dentro e sento-me de pernas cruzadas no centro de mim próprio. Fico uns momentos assim, de olhos fechados, meditando. Sinto o calor do teu olhar, o cheiro do teu corpo... estou aqui contigo.
O frio e a humidade são medonhos, atravessam-me os ossos. Abro de novo os olhos. O silêncio é total, mas eu sinto que o sol está de volta. Tenho pouco tempo, agora. Erguendo a voz bem alto, eu falo, certo de que alguém me olha e me ouve. " Perdoa-me, minha querida! É teu o meu coração (bem o sabes), mas a minha alma está geminada à do Sol — não há nada a fazer..."
Volto a olhar para dentro de mim. Em alguns instantes apenas, o espectro azul estará aqui. Na solidão adimensional do Limbo, revejo os momentos, a história de umas horas. Nunca serei capaz de ultrapassar o momento.
Quando o meu espírito recupera do vazio anil em que se encontrava, o Sol já nasceu. À minha frente, já não está a linda mulher de azul. Estou apenas eu e o mar, o sol e a ria.
Estou feliz, mas não consigo mais do que sorrir levemente: os músculos da minha face não respondem; também não sinto o corpo...
... mas estou feliz.
Os cacos da vida

Vou lamber delicadamente minhas lembranças, vou banhá-las todas com o sal amargo das lagrimas, vou prepará-las para o voo do esquecimento. Vou acalentar os sabores e sonhos perdidos como se nunca tivessem partido. Vou rir como se nunca houvesse existido. Vou carregar presságios pela vida afora (que nunca se hão de cumprir) como se fossem a certeza da sina - são o virtual.
Vou acreditar no que sonho e vou desejar, ardentemente, o impossível, como se alcançável todo o tempo.
Vou andar com a cadencia certa e acreditar, piamente, que é minha a marcha, criação do passo - vou acreditar no livre-arbítrio.
Mas vou porque preciso, porque me falta tacto para o engano; vou porque senão afundo neste poço sem fundo. Vou tanta coisa... que nem sei o quê.
Do que faço pouco me sei. Só sei que nada faço. Faço o que não quero e não faço o que quero.
Palmilho este velho chão de feridas; retiro as crostas destas feridas invisíveis sem gemidos, e sorrio. O que me resta, afinal? O que ainda me sobra ainda? Nada, nada me resta neste caos,
Mas não consigo nunca desligar-me de tudo; há relíquias que mantenho firmes dentro de mim, referências necessárias - coisas boas, boas pessoas. Os pânicos vou dispensá-los, Ah, bem preciso!... Os receios, as auras de falsa protecção, as dores sem respaldo, os horrores, as lembranças amortecidas, os desejos enrijecidos...
Ah, quero os beijos dela agora!... Ah, quero as suas caricias agora!... Ah quero sentir o calor do seu corpo agora!... Ah... quero os passos hesitantes, a marcha sombria de um pânico cego.
Ah, tudo o que quero enterrar pelo caminho! O tanto que desejo dispensar antes que me pareça ainda mais tarde - tão tarde!...
È tarde... voltei a perder.

Monday, December 12, 2005

A Aliança atenta dos silêncios.

É uma criatura esplêndida, carregada de charme, segura de si, altiva. Por trás da sua capa vê-se uma doce, meiga, capaz das maiores aventuras. Dou comigo a olhar para ela, contemplativo, e ela sabe-o, sente-o. Deixo de olhar para ela e ela vira os olhos para mim. Eu sei-o, sinto-o .
É uma vaga por entre o silêncio.
É uma mulher que seduz sem palavras, por isso possui uma arma temível. Por trás daquele olhar, incrivelmente palavroso, fixo aqueles olhos verdes, lindos, tão expressivos e serenos. Parecem vazios de expressão mas com o seu sorriso aberto dizem tudo o que queremos saber.
O seu corpo, o quadril, o porte da cabeça, o brilho dos cabelos, os joelhos, ai os joelhos, as pernas, a cintura, as formas bonitas, os seios, os gestos graciosos, tudo nela produz encanto que admiro, por vezes como uma certa grosseria.
Peguei-lhe na mão, nos dedos finos para poder sentir o calor do corpo. Senti carinhosamente as mazelas provocadas pelo mau funcionamento orgânico. Senti o calafrio natural de quem gosta. Ela engole-me na sua magia. A alquimia do encontro não acontece. Mas sinto-me perto, sinto-me bem, sinto-me sereno.
Para vê-la preciso saber olha-la em silêncio. Sinto que gosta de ser acarinhada, contemplada, gosta de estar rodeada de atenções e afecto.
A nossa aliança baseia-se na cumplicidade atenta dos silêncios. Em silencio saberá descobrir e saberá enroscar-te no meu amor como se uma roupa aconchegante vestisse. O enroscar de uma serpente que de forma lenta e dócil apertará o meu corpo, esmagando-o e dele extraindo todo o calor.
O dia chegará em que na cumplicidade atenta dos silêncios, a verdadeira beleza do amor se fará graça e esforço, dádiva e conquista permanente.
O silêncio que se seguirá dirá tudo sobre a qualidade do prazer, ou das frustrações, sobre a verdadeira satisfação dos amantes, da sua eventual regeneração e da sua harmonia, nua.
É sempre um prazer estar com ela mesmo no silêncio.
Fascínio

Essa mulher, que tanto fascínio exerce sobre mim, tenta compreender-se desesperadamente, tenta amar-se entre fúria e desordem, busca o (esquecido) gosto doce das lembranças, a custo arrancadas da memória.
Essa mulher, que aos primeiros sorrisos parece simples, de fácil compreensão (e digestão), desgarra suspiros profundos da alma, arranha-se por dentro como fera selvagem, sofrendo por dores que não compreende, e ansiando absoluta pelas que desconhece.
Ai, essa mulher que dói a linguagem do amor, sua necessidade premente (antídoto da loucura) e sua ausência sofrida;
Essa mulher que arde fogueiras solitárias; cujo coração compassa, absurdo, no ritmo das esporas de um cavaleiro que perdeu o sentido de caminho inevitável...
Essa mulher que deseja e tripudia os próprios desejos; que sonha e repudia ao mesmo tempo; que acredita (tanto!) e se engana, sinceramente; essa mulher que me fascina e tem medo...
Não! essa mulher não é tigresa afiada, megera indomável, fera cobiçada!
Essa mulher é bicho assustado, é corpo fechado; é medo intocável!
Porque se lhe roçam a pele, os pelos se eriçam, - mas quem a liberta?
Porque se lhe beijam a nuca, sussurram ao ouvido, ou tocam os seios, - o corpo estremece; mas quem reconhece? (quem a conhece?)
Quem? a se dar o trabalho de despir essa nudez tão criteriosamente coberta pelas ilusões (tantas) alheias; vestida, meticulosamente, palmo a palmo, pelos erros fáceis de quem se contenta em olhar sem enxergar com clareza? Pelos deslizes de quem se nega o mergulho, - porque o fundo (não) se vê, não significa que é raso; assim como nem tudo que não tem fundo significa afogamento...
Quem vê? Quem? para a despir, de corpo e alma?
Quem? para lhe dizer: amo-te, e deixa-la acreditar, livremente, simplesmente, como se tivesse sido fácil desde o início dos tempos...
Onde? o lugar que perdeu, mas seu coração ligou-se de maneira incompreensível, numa curva obscura do túnel do Tempo e das Gerações, de onde não se conhece mais nada, de onde não sobra mais nada, de onde não voltará jamais!
Quem, por deus!, a vai despir de si, para lhe contar, um dia, que foi melhor assim?
Ah, um espelho que não a minta tanto, implora! um sorriso que não esconda tanto quanto se pensa que expõe; um olhar que não fixe tanto em sua cor, apagando o esgazeado da dor, um...
Mas para quê? se não é nela, nem agora. Para quem, se não acredita no que acredita? Porquê? se o que quer não se alcança, se o que oferece não se busca, se o que libera não se adivinha, se o que expõe não se compreende... se nega tudo!
Quem, para a despir, de corpo e alma?
Quem...