Wednesday, November 30, 2005

O Rio

Ouvir a lenta caminhada de um riacho rumo à foz pode ser um dos exercícios mais salutares que um homem pode encontrar no seu período de vida. O som cristalino das gotas de água a bater nos seixos de um leito baixo, faz avivar recordações de menino.
Recordações de um tempo em que a pureza existia por si mesma, sem adulterações, sem concessões! Onde nessa pureza, não se punha em causa a sua inexistência eterna e permanente! Assim, o Homem depois de adulto, não consegue nunca voltar a esse estado ancestral, violento e belo de pureza, mais não seja porque vivendo-o, sabe que a impureza existe.
Para uma reunião prolongada, daquelas em que dois litros de água e dez cafés não chegam para suavizar, visitei um destes dias, uma fábrica de componentes electrónicos. Tinha que recolher informação para a elaboração de estudo e um diagnóstico de situação. Para quem não sabe, estes estudos servem para o aconselhamento das empresas no sentido económico e de investimento. Esta definição tem muito que se lhe diga, mas ficará para outra altura. Acontece que essa fábrica fica ao pé de um dos rios mais belos que conheço. Estava eu quase a chegar ao meu destino quando para infortúnio meu, o meu carro, que já pede substituição há bastante tempo, resolveu rebentar um tubo de óleo, provocando um ligeiro princípio de incêndio. Parei numa estada deserta e telefonei para o reboque. Muito diligentes informaram-me que provavelmente o dito demoraria duas horas. Coisas que acontecem nestes seguros que têm assistência em viagem.
E eu ali perdido, com horas marcadas para a reunião (com meia dúzia de titulares de cargos pomposos), numa estrada, que não fosse de uma zona que muito gosto, apelidaria de parideiro perdido no tempo. A última coisa que me faltava agora era perder aquele tempo e o cliente e seu staf à espera. Telefonei-lhes a explicar a minha situação e telefonei também para a empresa a avisar que provavelmente me iria demorar mais um dia naquelas paragens.
Entretive-me nestes afazeres, não mais do que dez minutos, o que deixava ainda muito tempo para matar. Como ainda não tinha conseguido livrar-me da sujidade toda do incêndio, decidi fechar o carro e ir de encontro ao rio que ouvia distintamente no silêncio. Quando finalmente ultrapassei a orla de choupos que ladeavam o rio deparei como um dos mais belos espectáculos da minha vida.
Perante mim estendia-se um espelho de água de grandes dimensões, ladeado por salgueiros e choupos. O único ruído era o da pureza da natureza, ouvia rãs em seus cânticos amorosos, as pequenas libélulas a zumbir, nas suas danças de vida e morte e acima de tudo ouvia a água. Uma pequena represa obrigava o líquido a contorcer-se e a deixar a quietude do espelho de água e a produzir um ruído cristalino que inundava os meus ouvidos. Sentei-me um pouco, num rochedo enquanto me limpava, e fui um espectador privilegiado de um recital que a natureza me ofereceu.
Aí recuperei um pouco da minha infância, da minha pureza e do meu enorme gosto pela vida. Foram instantes que nunca esquecerei.
Claro que resta dizer que quando voltei para o meu carro, o reboque já esperava por mim há 4 horas, que no dia seguinte não consegui acabar de recolher os elementos para o trabalho que teria de levar a cabo. Claro que todos aqueles senhores, com títulos pomposos estavam prontos a devorar-me. Tive vontade e cheguei mesmo a dizer que, naquelas condições não faria o tão almejado trabalho.
Perguntam-me porque o fiz, o que realmente se passou naquele dia alguns meses atrás. Eu respondi: Alguns meses atrás vi uma sereia encantada, uma moura que num poço sem fundo cantava as mais doces canções árabes de amor. Era uma voz de menina, mas amadurecida pelo saber e pelo calor de um deserto em que naveguei. Encontrei um sentido e um caminho. Apaixonei-me pela sua voz e o seu encantamento foi de tal ordem que tudo o resto me pareceu irrelevante. Foi como morrer para depois renascer. Hoje sou finalmente um Homem realizado. Vi a luz que tantos buscaram em batalhas e conquistas de sangue e descobri que o maior pecado do Homem é o esquecimento. O esquecimento das coisas simples e belas do mundo. Enquanto estive ali sentado, ouvindo o sussurrar daquele leito de felicidade, tudo se transformou em mim. Deixei para trás um passado em busca de um outro mais longínquo. Recuei à minha própria fecundação, onde por desígnios superiores fui concebido, regressei ao leito de minha mãe e me encontrei com seus seios. Deliciei-me nesse leite de cristalina pureza e compreendi que o objectivo não é não ter objectivos. O objectivo é regressar à simplicidade do belo, das pequenas coisas, sem exigências, sem confrontos, sem compromissos. Na beleza nada é passível de ser perdido ou esquecido. O todo torna-se belo de per si, não por parte dele nos agradar mais, ou menos.
Apenas querer
Eu quis um dia saber cantar, ouvir sons cristalinos da voz delirante, nos espaços pendurados dos raios de estrelas, nos fragmentos de nuvens, nos olhares das mentes que se elevam para além do ser.
Eu quis um dia viver os sonhos começados...
Eu quis um dia saber falar, ouvir-me na voz e na vida, em opinião respeitada, admirada, profunda, meditada.
Eu quis um dia que a voz falasse calada, que se ouvisse sem ter som.
Eu quis falar com o saber, onde o saber fosse olhar ou tão somente sentir.
Eu quis saber falar ao espelho, olhar nele o eu que sou, sabendo que nunca seria, ou mesmo que nunca me veria tal como apenas sou.
Eu quis apenas saber falar de mim. Olhar-me reflectido como se esse eu mostrado não fosse o eu transportado em suporte físico comum, de corpo matado de senso ou isento de ausências presentes.
Eu quis um dia ouvir e fazer-me ouvir no silêncio das palavras.
Eu quis um dia saber ler através dos teus olhos, conhecer o teu sentir, mergulhar na tua alma e aí permanecer.
Eu quis um dia saber andar, caminhar com passos leves, pisando bolas de algodão semeadas por carreiros e veredas dum horizonte fugidio.
Eu quis um dia não andar apressado, sem ter metas previstas nem linhas de partida marcadas.
Eu quis saber andar pelas estradas, desviando o corpo das máquinas que não controlo, enroladas em saberes que não domino, doidas de loucura crescente, ocultas e perdidas no meio de reflexos matinais em madrugadas que só vi ao entardecer.
Eu quis um dia saber sentir, saber do teu sofrimento e das tuas alegrias, que se calhar não vi por não querer.
Eu quis um dia ver o que não sou e que me parece que nunca o serei.
Eu quis sentir o que sentem, aqueles que não possuindo apenas pedem para ter, aqueles que não vendo apenas querem olhar, e aqueles que não rindo apenas querem sorrir.
Eu quis sentir o outro em mim, aconselhar-me em luzes fugazes de frestas enrugadas de rostos doridos de sofrimento de dor e de sofrimentos sentidos como penso que não sinto.
Eu quis um dia saber olhar, levantar os olhos do chão, ver ao longe e ver ao perto.
Eu quis abrir meus olhos ao espaço e por entre postigos inquietos de portas sempre fechadas em casas que não se abrem, saber dizer o que vi saber contar o que senti... sentindo o que contei. E sobretudo olhar ao longe que ao perto já se vê, quando o perto é muito perto, é mais fácil de olhar mas mais difícil de ver.
Eu quis um dia saber amar, saber sobretudo falar aquilo que gostava de ouvir sem ser preciso pedir ou sem ninguém me dizer: Que bom seria se dissesses ou que bom seria se quisesses, apenas querendo dizer.
Eu quis um dia saber se amar é conhecimento adquirido ou saber só aprendido, ou sentimento cultivado em terra lavrada de pranto por tantos medos sentidos e tantos amares perdidos por vergonha de dizer, ou por ausência de querer.
Eu quis um dia sonhar, saber olhar, saber ver, saber falar, saber cantar, saber andar e sentir
Eu quis um dia saber amar também.
Eu quis que o meu sonho fosse o canto, a minha voz o caminho e o meu amor sentimento, em canção que fosse sonhada, em fado que fosse amado e em caminho que fosse sentido.
Eu quis amar como se olha, ou sentir como se canta, e andar como se fala.
Eu quis ter voz, ter saber e olhar à minha volta, vendo a voz e vendo o fado, querendo que o fado querido, fosse o olhar que me faltou e a voz que nunca tive, no saber sentir...
Falhado, no saber andar... Perdido, no saber amar... Escondido no saber ser destruído... Por apenas querer Ser... Por apenas te querer amar
Eu quis ver o entardecer antes do amanhecer
Eu quis ver o amanhecer antes do entardecer
Eu quis ver... Eu quis sentir... eu quis apenas viver

Daqui, deste lugar, não te posso ver, Daqui, deste lugar, não te posso tocar, Daqui, deste lugar, não te posso beijar, Daqui, deste lugar, não posso olhar dentro dos teus olhos Daqui, deste lugar, não posso adivinhar o que eles estão a tentar me dizer...
Mas, daqui deste lugar, posso sentir, posso sonhar,
Posso lembrar-me do calor e do carinho que trocamos.

Caminho

Por entre os estranhos caminhos de mim
procuro nas ruas e vielas labirínticas do pensamento
os destroços de uma caravela imaginada.
Perdido nas sombras do mar, às vezes calmo, às vezes tempestuoso,
voga a minha barquinha sem tempo num oceano de palavras.
As palavras de água juntam-se e fazem poemas,
às vezes roubam-me o personagem que eu tinha imaginado,
esquecido nas ruas sombrias desse mar, à espera de um nome,
à espera de um lugar.
No segredo das coisas secretas que guardo em Segredo

O momento

Falta no máximo meia hora para que a noite acabe; ainda tenho algum tempo. O Sol não deve tardar aí. Começa-se agora a notar aquela estranha claridade que anuncia o nascer do dia. Olho á volta. Ali o mar e as dunas. Do outro lado a ria. Tudo é belo nesta estranha claridade. Suspiro e fecho levemente os olhos, tento rever aquela imagem no meu cérebro. Tão belo! Volto-me para dentro e sento-me de pernas cruzadas no centro de mim próprio. Fico uns momentos assim, de olhos fechados, meditando. Sinto o calor do teu olhar, o cheiro do teu corpo... estou aqui contigo.
O frio e a humidade são medonhos, atravessam-me os ossos. Abro de novo os olhos. O silêncio é total, mas eu sinto que o sol está de volta. Tenho pouco tempo, agora. Erguendo a voz bem alto, eu falo, certo de que alguém me olha e me ouve. " Perdoa-me, minha querida! É teu o meu coração (bem o sabes), mas a minha alma está geminada à do Sol — não há nada a fazer..."
Volto a olhar para dentro de mim. Em alguns instantes apenas, o espectro azul estará aqui. Na solidão adimensional do Limbo, revejo os momentos, a história de umas horas. Nunca serei capaz de ultrapassar o momento.
Quando o meu espírito recupera do vazio anil em que se encontrava, o Sol já nasceu. À minha frente, já não está a linda mulher de azul. Estou apenas eu e o mar, o sol e a ria.
Estou feliz, mas não consigo mais do que sorrir levemente: os músculos da minha face não respondem; também não sinto o corpo...
... mas estou feliz.

Saturday, November 19, 2005

SAUDADE.
Tu partiste e eu fiquei, nesta terra de amargura e incerteza, abandonado às tempestades de areia morta.
Em ti pensei e em ti penso, no teu rosto e no teu sorriso tão querido, nos teus olhos, que um dia se fecharam tal qual estrela no céu se apaga!
Por ti chorei e por ti choro, pela ternura que me deste, pelo amor com que me verteste, pela vida que me deste. Na tua ausência e na do teu amor
Aqui, sou eu , cínico e egoísta como todos. Lá, és tu, a pureza e a verdade de quem nasce.
À noite, quando me deito e beijo na distância o teu rosto, rasgo o silêncio das trevas que me envolvem e trago-te até mim em pensamento.
Para mim, serás sempre uma lembrança viva, que não morreu e que se manterá sempre viva. Dessa inconsciente criança que deixaste, do menino mimado não resta nada! Hoje, sou o homem, o pecador! Hoje sou o homem que segue os teus conselhos.
Sei que me olhas do Paraíso onde te encontras e que me sorris, apesar de te não ver, ou que choras por não ser aquilo que desejavas. Não fui nem nunca serei. Nunca fui tão forte como tu. Mas sabes que tento, sabes que tento ser justo. Sabes que me esforço. Sabes que luto. Sabes que tento viver dando o pouco que tenho.
Perdão por tudo e pede que um dia te encontre como se daqui jamais tivesses saído.
Meu bom amigo... tenho saudades.
Para ti pai amigo
Estamos perto do Natal. Hoje faz um ano que tu partiste. Faz hoje um ano e alguns dias que te levei até á tua ultima morada nesta terra. Agora sei que vais vigiando as coisas aí de cima para que tudo se mantenha como tu gostas. É nesta altura do ano que estás ainda mais próximo de mim, e fazes-me lembrar que devo continuar a manter a tradição do Natal viva. Neste dia todos estávamos contigo, vivendo os espirito do dia e principalmente da família que sempre te deste ao luxo de ter contigo. Conseguias sempre reunir esta tropa toda e ficavas feliz. Eu vou cumprindo como posso, mas tu fazes falta junto de nós, mais que não seja para fazer o controlo das operações. Sempre gostastes dessa função. Mesmo quando não te mostravas nós sabíamos que nos estavas a controlar e que não deixavas nada ao acaso.
Para que tudo se mantenha como gostas, sabes que o bacalhau já está de molho, o cabrito vem a caminho, as couves chegarão no momento próprio. Este ano decidi fazer bacalhau assado na brasa em substituição do bacalhau cozido. Sabes aqueles panelões grandes acabavam por transformar as batatas quase em puré. Vai dar mais trabalho do que costume, mas o que é isso para quem está folgatito. Não sei se o pessoal vai gostar, mas vai ser diferente. Lá terei que fazer um esforço para mostrar os meus dotes de cozinheiro. A Bety vai estando comigo e espero que saia tudo bem.
Como sempre, mantendo a tradição, mandas-me para as compras com uma lista interminável de prendas. Os teus netos fizeram chegar as cartinhas para o Pai Natal. Sabes como é, cada um fez uma lista igual aquelas que levamos para os supermercados. Vamos ver o que consigo fazer com o orçamento que tenho. Falta tão pouco tempo e eu ainda não comprei nada. Também é verdade que somos poucos. Trinta e dois ao todo, mais um ou outro amigo que nunca deixamos sem prenda neste dia. Vai ser um tal viajar, fazer umas birras, (sabes que faço sempre) dentro dos hipers e centros comerciais. Tens que organizar as coisas para eu passar a pasta a outro. Já lá vão vinte e seis anos a fazer esta mesma tarefa. Tens que me poupar um bocado porque começo a ficar velhote para isto. Começa a ser difícil achar graça ás barbie’s, aos nenucos, aos jogos do pokemon... todas essas coisas que a canalha quer.
A tua Maria tem-se aguentado bem, e continua a fazer aquilo que tu fazias. Mantém as arcas cheias de coisas e diz que não sabe o que vai fazer para alimentar as tropas. Agora já não sei se eras tu que tinhas a mania de ter tudo em casa ou se era ela que te ia fazendo dar as voltas pelos supermercados. Vícios antigos, não é pai. Coisas que eu se calhar também faço e nem noto.
Acabei as compras, falta qualquer coisa, mas amanhã também é dia. Tu sabes que sempre nesta altura a minha vida fica um martírio, porque tenho que organizar o jantar com o pessoal na empresa, o lanche para os filhos dos funcionários, eles também gostam de uma prendinhas que eu tenho que comprar de acordo com a idade deles, tenho também organizar as coisas para a ceia de natal e para o almoço, lanche e jantar no dia de natal. É assim todos os anos e este não vai ser diferente.
As tuas meninas começam a chegar amanhã, e este ano vamos estar todos á mesa com apenas uma excepção. O Carlos e os filhos não estarão á mesa. Mas eles vêm depois do jantar para a distribuição das prendas. Sabes que não quero falar disto. Não te vou dizer nada a este respeito porque me faz mal a mim e a ti.
Se estás atento já viste que estou de rastos, depois destas horas todas na grelha a assar o bacalhau. Foram-me trazendo cervejinha fresca para ir ajudando. Tenho que ter cuidado, senão apanho uma carraspana e lá se vai o bacalhau. Este ano nem vou ter com o grupo de costume ao café para bebermos a cervejinha da noite porque não tenho tempo.
Os teus netos apareceram aqui agora e já me fizeram chorar. Sabes que não sou dessas coisas... chorar... mas olha... é assim... estou a ficar velhote... ou será que foi do fumo deste fogareiro?
A assada do bacalhau está pronta, e agora vamos lascar o bacalhau, as batatas já estão meias cozidas, vamos juntar umas rodelas de cebola e algum tempero, muito azeite e vai tudo para o forno. Tenho pena que aqui não estejas para provar.
Como sempre está todo o mundo na cozinha e fazem uma barulheira infernal. Um grupinho aqui, outro ali. Tu sabes como é. A tua Maria vai dando corda e este e também aquele, e anda contente por ter novamente a família junta. O teu genro trouxe o vinho. Nessas coisas ele é bom. Vamos ver se chega.
O jantar está pronto, são nove da noite, as tuas filhas e netas já puseram as mesas na cave, aquela onde nos sentamos sempre todos, e vamos começar a atacar. Vais fazer muita falta, mas iremos todos fazer uma força para que não seja muito doloroso.
O jantar estava delicioso, modéstia á parte, mas sobrou muita coisa. Sabes como sou... para mim nunca chega. Isto não é novidade para ti, foste tu a ensinar-me a ser assim. O vinho chegou. Para não variar, a desgraçada da tua filha que tem o asar de se sentar a meu lado nessa noite bebe sempre um pouco mais. Este ano a Eduarda está simplesmente divinal. Fala pelos cotovelos (já é ela e o vinho a falar), e palpita-me que vai chamar pelo gregório. Não faz mal ela está linda.
As tuas netinhas foram buscar o café e a respectiva garrafa do cheirinho com gelo. Falta saber quem vai levar os carros para casa, mas... depois se verá.
É neste momento que nos fazes mais falta. Lembro-me de te juntares aos teus netinhos com a tua Maria e ali ficarem durante cerca de duas horas a assistir a distribuição das prendas, á excitação da canalha e ao teatro que eles todos os anos nos brindam. Este ano foram os mais novos a fazer o teatro apoiados e organizados pelas netas e netos mais velhos. Estão a ficar profissionais.
Um dos teus filhos vai-se vestir de Pai Natal, este ano é o Fernando que cada vez está mais careca, para começar realmente a festa para os teus netos. Vai começar a saga das prendas... as perguntas normais – para mim não há nenhuma? Os ajudantes do Pai Natal (o teu neto Jorge e o Nuno) lá vão escolhendo as prendas para eles não ficarem excitados. É um tal rasgar os embrulhos. É bom ver a expressão deles quando começam a aparecer as cozinhais que tinham pedido ao Pai Natal. No meio disto tudo, vai-se bebendo mais um copo, e mordiscando mais qualquer coisa para ir amparando o estômago.
Com isto tudo, dou-me conta que são duas da manhã e que tenho que me levantar relativamente cedo para preparar a caldeirada. O teu filho Carlos que normalmente se encarregava da caldeirada não vai estar e por isso lá vou eu novamente. A sorte é que as tuas filhas descascam as batatas, as cenouras, e as cebolas, limpam os pimentos e os tomates. Assim á mais fácil para mim depois.
Bem, doem-me as pernas. Custo-me muito a levantar. Penso que ainda tenho mais álcool no sangue do que quando me deitei. Também dormi pouquito. Foi um semana e pêras num corre corre para que tudo estivesse á altura do dia, mas lá vou eu para começar a preparar a caldeirada. Fica sempre boa. Entretanto lá foram as pernas do cabrito para serem assadas. Vão fazer falta para noite.
Verificamos que o vinho que o teu genro trouxe tinha acabado. São todos uns bebedolas estes teus filhos, e principalmente as noras e os genros, não se admite que ele seja tão sumitico que não traga vinho suficiente. Por isso fomos ver o que tinhas na garrafeira. Eu tinha comprado o espumante tinto para o cabrito, mas como nem toda a gente gosta lá tivemos que assaltar a tua garrafeira.
Depois de devorar o almoço e beber uns copitos fiquei com uma soneira e resolvi ir para casa dormir. A Bety também estava de rastos. Ás sete horas voltei para o lanche ajantarado. Sabes que a esta hora começa a apertar novamente a sede. Vamos beber cerveja agora porque senão ninguém nos levanta amanhã.
Amanhã voltamos todos para comer a roupa velha. Por este andar mais valia ficar aqui o resto da semana.
Custou um pouco passar sem ti... mas olha que cada um fez o melhor que podia para te ter sem que os outros percebessem.
Tenho saudades tuas meu bom amigo.
Sonhos apenas...
Nestes últimos dias tenho tentado separar o corpo do coração e o coração da alma.
Quando penso que poderíamos ser dois corpos e duas almas num só, as lágrimas teimam em surgir. Pela mágoa. Por desconhecer o tempo exacto da vida. Por desespero.
Tenho odiado as palavras. O som oco que elas projectam na alma e o eco profundo que causam no coração. A ressonância que elas provocam no corpo... O som das sílabas a impor-se ao som ritmado do coração; o coração a bombear, incessantemente, sangue e o sangue a percorrer a dor da distancia do teu coração e do teu corpo (que se tornaram, entretanto, independentes e distantes do meu).
As palavras não conseguem exprimir um pedacinho, por mais pequeno que seja, daquilo que sinto...
Ouviste o meu chamamento, ainda há pouco?
Sentis-te a resignação que me invadiu quando o som repetitivo do telefone te chamava sem resposta? Não porque não o atendesses, mas porque eu desliguei antes disso.
Quiseste ter–me a teu lado para me abraçares? Para partilhar agonia, desespero, fúria, dor e tudo o mais que se juntou nos dias que te separam de mim?
E os dias... longos, ásperos, cinzentos e sem emoção! Sem o teu olhar brilhante. Sem o teu sorriso cúmplice, aquele que guardavas só para mim, para partilharmos na intimidade. Na intimidade da alma. Na cumplicidade do coração.
Aquelas que se perderam.... e o tempo que se arrasta... e eu sem ti!...
Onde estávamos nós quando escolhemos caminhos diferentes? Em que ponto da nossa rota nos desviamos? Lá à frente existe alguma encruzilhada?... eu vou contigo...e tu virás sempre, sempre, sempre comigo. Onde eu for, tu estás. O que eu lembrar, tu partilhas. O que eu pensar, tu guias... e eu sei, assim, que vou estar certo, ou pelo menos, menos errado.
...e eu sem ti!... e o tempo a arrastar-se!... longo, monótono e infinitamente triste.
Nunca pensei que estava a fazer uma escolha, ainda que inconsciente, para partilhar uma nova e enorme amizade!
Nunca quis aceitar que a outra cumplicidade espelhava a separação – gradual – do meu sangue e do teu coração; que separava o teu corpo da minha alma; que separava o teu toque do meu olhar; que separava os teus sussurros dos meus espantos; que separava os teus segredos do meu riso; que te separava de mim... perdi–me, quando te comecei a sentir que estava cada vez mais próximo de ti.
Sabes o que dói mais? O que me faz sentir estupidamente impotente? O que me arrasta com o tempo, sem me importar a inércia da alma?
É o eu sentir–te; saber que estás aí perto, mas infinitamente longe de mim. Que partilhas o tempo com os outros e eu não sei o que tu sentes; não sei o móbil do teu pensamento; não sei se o alívio faz de ti um ser diferente e ainda mais distante de mim; não sei o que o teu olhar observa; o que a tua boca exprime; o que o teu corpo emana; não sei se a tua alma – também – sangra...
Eu sei o quão fútil tu achas este pedaço de mim; imagino o sorriso prazenteiro ao leres o que me vai na alma; receio o teu completo alheamento desta minha breve – e longuíssima – realidade.
Os meus músculos esboçam sorrisos; as palavras comunicam trivialidades inconsequentes; mas eu sinto (eu vejo), o meu olhar triste, cansado, demasiado desesperado e faminto de ti.
Depois deito–me e vejo–te em pedaços de papel, que contam a história de um momento que ficou imortalizado pela luz que incidia nos pequeninos halogenetos de prata. E tu estás aqui, a sorrir e eu sinto–me ainda mais triste, mais desesperadamente impotente.
A razão responde. A alma grita. O coração acelera. O corpo esmorece.
O tempo... aquele sinal vago, que conta quando o contamos, que pesa quando nos apercebemos. O elixir do qual precisamos para conhecer o amanhã. O amanhã que eu desespero para conhecer, o amanhã que eu sonho ser.
O momento

Há momentos que são mais belos que outros. Há momentos que ficarão, querendo ou não, gravados para sempre na memória. Deles recordaremos o local, a paisagem e o dia escuro. Dele também recordaremos os momentos que em silêncio aguardamos medindo o espaço de tempo que medeia entre uma onda e outra. Dele recordaremos ainda que o tempo voa e que não controlamos o momento.
Há momentos que, mesmo querendo, não nos recordaremos dos rostos que nos rodeavam, porque não eram importantes. Realmente eles nem estão lá, não existem. O momento não permite que a nossa atenção se prenda com esses pormenores.
Há momentos que mesmo falando estamos em silêncio fascinados por um rosto que lentamente vai descobrindo a criança que fomos e somos. Devagar vamos descobrindo em todos os gestos, a sensibilidade para as coisas, a inteligência, os gostos e a tendências particulares. Percorremos em silêncio, o labirinto do pensamento esperando encontrar a resposta que queremos. É neste labirinto que queremos entrar… uns conseguem-no enquanto outros não. Queremos que o silêncio se encarregue de derrubar a muralha que nos parece intransponível. Queremos porque não temos coragem nem palavras para o fazer.
Há momentos que a linguagem dos olhos é a moldura das coisas que não dizemos. O sinal que não encontramos mesmo falando sem ruído. Nestes não entendemos as meias palavras ditas em silêncio. É um dilema milenário esse comunicar.
Há momentos que o silêncio possui a limitação dos olhos e nos transporta para além do universo. Aqui falta-nos a capacidade de ler os pensamentos como o fazemos num livro aberto. Falta-nos também a força para entrar nele, como num quarto vazio e nele permanecer tornando-o na nossa morada.
Há momentos que mesmo repetidos nunca voltarão a ter o mesmo silêncio. Nunca voltará a haver a mesma cumplicidade dos silêncios. A linguagem dos olhos também não será a mesma. O cenário, mesmo que voltando ao mesmo local, não se repetirá. Tudo tem a ver com a oportunidade e o momento.
Há momentos em que sentimos o silêncio inquieto, em que imaginamos o que nos parece inultrapassável. Parecemos náufragos abandonados num oceano imenso, perdidos nos aspectos decisivos da existência. Queremos trocar as desesperanças por novas esperanças e não temos coragem para gritar os nosso desejos e sentimentos. Temos medo de matar o momento que é belo. Temos medo de quebrar o elo da amizade. Tudo coexiste no seu contrário, alegria e dor, cansaço e repouso, ausência e presença, ser ou não ser, dizer ou não dizer... basta-nos apenas continuar usando as tempestades e as bonanças que vamos encontrando pelo caminho.
Há momentos em que o silêncio se estende a nós, nos faz andar á roda, em delírio, com uma bola no estômago, um nó na garganta, os olhos arregalados. No meio destes silêncios longos mantemos o equilíbrio deixando que o tempo se encarregue de tratar de tudo.
Há momentos em que a ansiedade toma conta de nós, e desgasta o corpo e a consciência. Linguagem das paixões, o silêncio. Para apreciar este silêncio é preciso saborear silenciosamente os actos, tal como fazemos com um espectáculo, uma iguaria, uma bebida, uma pele.
É neste conjunto de silêncios e palavras que vamos cultivando a personalidade e aquilo que ela exprime. É o silêncio do prazer sereno.
A Aliança atenta dos silêncios.
É uma criatura esplêndida, carregada de charme, segura de si, altiva. Por trás da sua capa vê-se uma doce, meiga, capaz das maiores aventuras. Dou comigo a olhar para ela, contemplativo, e ela sabe-o, sente-o. Deixo de olhar para ela e ela vira os olhos para mim. Eu sei-o, sinto-o .
É uma vaga por entre o silêncio.
É uma mulher que seduz sem palavras, por isso possui uma arma temível. Por trás daquele olhar, incrivelmente palavroso, fixo aqueles olhos verdes, lindos, tão expressivos e serenos. Parecem vazios de expressão mas com o seu sorriso aberto dizem tudo o que queremos saber.
O seu corpo, o quadril, o porte da cabeça, o brilho dos cabelos, os joelhos, ai os joelhos, as pernas, a cintura, as formas bonitas, os seios, os gestos graciosos, tudo nela produz encanto que admiro, por vezes como uma certa grosseria.
Peguei-lhe na mão, nos dedos finos para poder sentir o calor do corpo. Senti carinhosamente as mazelas provocadas pelo mau funcionamento orgânico. Senti o calafrio natural de quem gosta. Ela engole-me na sua magia. A alquimia do encontro não acontece. Mas sinto-me perto, sinto-me bem, sinto-me sereno.
Para vê-la preciso saber olha-la em silêncio. Sinto que gosta de ser acarinhada, contemplada, gosta de estar rodeada de atenções e afecto.
A nossa aliança baseia-se na cumplicidade atenta dos silêncios. Em silencio saberá descobrir e saberá enroscar-te no meu amor como se uma roupa aconchegante vestisse. O enroscar de uma serpente que de forma lenta e dócil apertará o meu corpo, esmagando-o e dele extraindo todo o calor.
O dia chegará em que na cumplicidade atenta dos silêncios, a verdadeira beleza do amor se fará graça e esforço, dádiva e conquista permanente.
O silêncio que se seguirá dirá tudo sobre a qualidade do prazer, ou das frustrações, sobre a verdadeira satisfação dos amantes, da sua eventual regeneração e da sua harmonia, nua.
É sempre um prazer estar com ela mesmo no silêncio.
Será sempre uma atenta aliança de silêncios.
A nascer o sol.
Deito-me. Não há um consentimento nítido em que a lua desça até ao meu rosto.
No canto onde me abrigo a tarimba é um emaranhado de panos fiados e mantas grosseiras. Uma tentativa vã de ajeitar o fato porque o sono entorna sobre mim os vapores do feitiço.
Ontem quase mergulhei na terra, na sede de me revigorar. Estava a nascer o sol. Não era dia nem noite. Pensei desistir do amor e aquietar-me, dormente, mas uma iluminura estreita foi tomando corpo em mim e apoderou-se. Ali. Um aroma que não identificava atraía os meus sentidos. Lembrei-me que algumas horas antes tinha principiado a contar as estrelas.
Reparei nos olhos redondos, verdes, e tão fixos de um gato que me fitavam, como se fossem uma observação profunda do meu ser. Devolvi-lhe o olhar e envolvemo-nos num fio de energia que me confortou.
A vida espalha-se por todas as fendas, a vida resplandece nos escombros que as ervas vão invadindo.
Nas ruínas escondem-se pedaços da nossa vida. A natureza não está muda. Mas esperemos que, no silêncio das nossas consciências, a mensagem passe.
Experimentei respirar lentamente e a fraqueza que me tomara antes diluiu-se no vapor do instante. Reencontrei-me no emaranhado do fato da minha alcova. Esse meu lugar de ausência fica num sótão dois degraus normais acima da terra.
O pensamento de estar um pouco ao alto aliviou-me este cansaço esta mágoa. Esperaria mais algumas horas para recomeçar a contar as estrelas. Entretanto aquele olhar fixo do gato estaria lá para me observar. Então aí, talvez a lua insistisse em descer ao meu rosto. E eu cedesse.

Thursday, November 17, 2005

O momento
Falta no máximo meia hora para que a noite acabe; ainda tenho algum tempo. O Sol não deve tardar aí. Começa-se agora a notar aquela estranha claridade que anuncia o nascer do dia. Olho á volta. Ali o mar e as dunas. Do outro lado a ria. Tudo é belo nesta estranha claridade. Suspiro e fecho levemente os olhos, tento rever aquela imagem no meu cérebro. Tão belo! Volto-me para dentro e sento-me de pernas cruzadas no centro de mim próprio. Fico uns momentos assim, de olhos fechados, meditando. Sinto o calor do teu olhar, o cheiro do teu corpo... estou aqui contigo.
O frio e a humidade são medonhos, atravessam-me os ossos. Abro de novo os olhos. O silêncio é total, mas eu sinto que o sol está de volta. Tenho pouco tempo, agora. Erguendo a voz bem alto, eu falo, certo de que alguém me olha e me ouve. " Perdoa-me, minha querida! É teu o meu coração (bem o sabes), mas a minha alma está geminada à do Sol — não há nada a fazer..."
Volto a olhar para dentro de mim. Em alguns instantes apenas, o espectro azul estará aqui. Na solidão adimensional do Limbo, revejo os momentos, a história de umas horas. Nunca serei capaz de ultrapassar o momento.
Quando o meu espírito recupera do vazio anil em que se encontrava, o Sol já nasceu. À minha frente, já não está a linda mulher de azul. Estou apenas eu e o mar, o sol e a ria.
Estou feliz, mas não consigo mais do que sorrir levemente: os músculos da minha face não respondem; também não sinto o corpo...
... mas estou feliz.

Wednesday, November 16, 2005

Silêncios do Sonho
Cada dia que passa tem os seus. Ontem disse-lhe uma frase que a aborreceu. Não me respondeu.
No silêncio que se instalou entre nós, ambos lado a lado na cama, senti uma onda vermelha chegar até mim, vibração de cólera que esmaga o espaço que nos separa.
É invisível, inaudível, inodora, mas está lá. Incrivelmente presente.
Em resposta eu acaricio-a, digo-lhe palavras doces, finjo que disse aquilo por dizer, tento transformar em piada, que estúpido que sou.
Ela nada diz, sinto-a sorrir no escuro, a onda agressiva acalma-se, transforma-se em ternura.
Sempre silenciosa.