Wednesday, November 30, 2005

O Rio

Ouvir a lenta caminhada de um riacho rumo à foz pode ser um dos exercícios mais salutares que um homem pode encontrar no seu período de vida. O som cristalino das gotas de água a bater nos seixos de um leito baixo, faz avivar recordações de menino.
Recordações de um tempo em que a pureza existia por si mesma, sem adulterações, sem concessões! Onde nessa pureza, não se punha em causa a sua inexistência eterna e permanente! Assim, o Homem depois de adulto, não consegue nunca voltar a esse estado ancestral, violento e belo de pureza, mais não seja porque vivendo-o, sabe que a impureza existe.
Para uma reunião prolongada, daquelas em que dois litros de água e dez cafés não chegam para suavizar, visitei um destes dias, uma fábrica de componentes electrónicos. Tinha que recolher informação para a elaboração de estudo e um diagnóstico de situação. Para quem não sabe, estes estudos servem para o aconselhamento das empresas no sentido económico e de investimento. Esta definição tem muito que se lhe diga, mas ficará para outra altura. Acontece que essa fábrica fica ao pé de um dos rios mais belos que conheço. Estava eu quase a chegar ao meu destino quando para infortúnio meu, o meu carro, que já pede substituição há bastante tempo, resolveu rebentar um tubo de óleo, provocando um ligeiro princípio de incêndio. Parei numa estada deserta e telefonei para o reboque. Muito diligentes informaram-me que provavelmente o dito demoraria duas horas. Coisas que acontecem nestes seguros que têm assistência em viagem.
E eu ali perdido, com horas marcadas para a reunião (com meia dúzia de titulares de cargos pomposos), numa estrada, que não fosse de uma zona que muito gosto, apelidaria de parideiro perdido no tempo. A última coisa que me faltava agora era perder aquele tempo e o cliente e seu staf à espera. Telefonei-lhes a explicar a minha situação e telefonei também para a empresa a avisar que provavelmente me iria demorar mais um dia naquelas paragens.
Entretive-me nestes afazeres, não mais do que dez minutos, o que deixava ainda muito tempo para matar. Como ainda não tinha conseguido livrar-me da sujidade toda do incêndio, decidi fechar o carro e ir de encontro ao rio que ouvia distintamente no silêncio. Quando finalmente ultrapassei a orla de choupos que ladeavam o rio deparei como um dos mais belos espectáculos da minha vida.
Perante mim estendia-se um espelho de água de grandes dimensões, ladeado por salgueiros e choupos. O único ruído era o da pureza da natureza, ouvia rãs em seus cânticos amorosos, as pequenas libélulas a zumbir, nas suas danças de vida e morte e acima de tudo ouvia a água. Uma pequena represa obrigava o líquido a contorcer-se e a deixar a quietude do espelho de água e a produzir um ruído cristalino que inundava os meus ouvidos. Sentei-me um pouco, num rochedo enquanto me limpava, e fui um espectador privilegiado de um recital que a natureza me ofereceu.
Aí recuperei um pouco da minha infância, da minha pureza e do meu enorme gosto pela vida. Foram instantes que nunca esquecerei.
Claro que resta dizer que quando voltei para o meu carro, o reboque já esperava por mim há 4 horas, que no dia seguinte não consegui acabar de recolher os elementos para o trabalho que teria de levar a cabo. Claro que todos aqueles senhores, com títulos pomposos estavam prontos a devorar-me. Tive vontade e cheguei mesmo a dizer que, naquelas condições não faria o tão almejado trabalho.
Perguntam-me porque o fiz, o que realmente se passou naquele dia alguns meses atrás. Eu respondi: Alguns meses atrás vi uma sereia encantada, uma moura que num poço sem fundo cantava as mais doces canções árabes de amor. Era uma voz de menina, mas amadurecida pelo saber e pelo calor de um deserto em que naveguei. Encontrei um sentido e um caminho. Apaixonei-me pela sua voz e o seu encantamento foi de tal ordem que tudo o resto me pareceu irrelevante. Foi como morrer para depois renascer. Hoje sou finalmente um Homem realizado. Vi a luz que tantos buscaram em batalhas e conquistas de sangue e descobri que o maior pecado do Homem é o esquecimento. O esquecimento das coisas simples e belas do mundo. Enquanto estive ali sentado, ouvindo o sussurrar daquele leito de felicidade, tudo se transformou em mim. Deixei para trás um passado em busca de um outro mais longínquo. Recuei à minha própria fecundação, onde por desígnios superiores fui concebido, regressei ao leito de minha mãe e me encontrei com seus seios. Deliciei-me nesse leite de cristalina pureza e compreendi que o objectivo não é não ter objectivos. O objectivo é regressar à simplicidade do belo, das pequenas coisas, sem exigências, sem confrontos, sem compromissos. Na beleza nada é passível de ser perdido ou esquecido. O todo torna-se belo de per si, não por parte dele nos agradar mais, ou menos.

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