Thursday, March 16, 2006

Cicatrizes

Olho-me ao espelho enquanto escovo os dentes, desfaço a barba e penteio os cabelos. Dou-me conta que já moro neste rosto há muito tempo, lembranças, passado. Tenho algumas cicatrizes perto da boca que o espelho não mostra, de palavras que disse, ásperas, duras, expurgando demónios.Que espelho é este, meu Deus, que não lhe mostra nada e me devolve em pedaços?
Ver-me... mas ainda vejo... perto destas cicatrizes pequenas, há outras, maiores, que a insónia sempre redimensiona... estas, das palavras que não disse, as que engasgam em cada tropeço de felicidade, as palavras que penso, as que projecto, as que senti e as que ficaram trancadas na boca, formando sulcos...
Num milésimo de segundo lembro a sensualidade de algumas palavras...e no impulso da hora, tiro a roupa. Olho-me inteiro, acabo criticando, através... Por que o espelho não me dá aquele talho na perna? O que há com estes espelhos? Mas o talho esta lá, eu pude sentir...ele se fez daquela vez em que não obedeceu ao impulso de partir, não ouvi sua vontade de caminhar ao encontro do que achava, ainda, possível...e sempre que escuto as velhinhas na calçada, falando que vai chover, o meu talho arde, como um reumatismo precoce, cobrando os atalhos que usou e os caminhos que não conheceu...
Este corpo que visto... ainda me presenteia sensações, energia... aquela sensualidade crua ainda me faz visitas... Penteio os cabelos... na mão uma queimadura discreta. Onde foi que a ganhei? Lembro-me bem... mas não interessa para o caso. A sobrancelha mostra ainda as marcas da traquinice de menino, do inventor e do audaz. São tantas marcas. Olho-me de novo...sorrio sem querer...Vejo que a vida há já muito me roubou a juventude.
E então, visto-me, num ritual vagaroso e apreciativo. Em cada marca mora um pedaço de mim: pequeno, grande, estriado, não importa...e em cada um exibo-me.
Parto sempre com um sorriso. Uma frase ‘Vai... vai... enfrenta o mundo.’
Afinal, o que há com estes espelhos?

2 comments:

Raquel Vasconcelos said...

"E então, visto-me, num ritual vagaroso e apreciativo. Em cada marca mora um pedaço de mim: pequeno, grande, estriado, não importa...e em cada um exibo-me."


O espelho caiu... e partiu-se. Já caira tantas vezes e desta vez preferiu dividir-se em três. E pergunto-me porquê, e pergunto-o a ele...
E penso no passado que me esconde do futuro enquanto me passeio pelo presente. Ali. Quebrado. Preso a uma moldura que já viveu mais que eu.
Tinha que surgir-lhe assim, em movimentos bruscos, para lhe roubar a imortalidade. Tudo porque eu mesma a repudio...
RV

Labirinto de Emoções said...

Sorri ao ler esta peça!
Os espelhos por vezes são crueis...ou talvez não, eles apenas refletem o exterior.
Quando olho para mim, penso..."já percorreste tantos kms, não querias ficar sempre menina pois não?"
Mas...o que ele não reflete, e ainda bem, são as cicatrizes da alma!
Algumas deixaram marcas tão dolorosas, que ele se partiria em mil pedaços!!!
Ainda bem que essas só eu as "vejo", porque dizem que espelho partido são 7 anos de azar...
Beijito e um sorriso para o espelho...:-))